O pensamento queer existe ou se manifesta de alguma maneira na América Latina?, por Francesca Gargallo

O pensamento queer existe ou se manifesta de alguma maneira na América Latina?[1]

Francesca Gargallo

Desde que ousei fazer essa pergunta às minhas amigas das redes de escritoras feministas e feministas autônomas, tive que reescrever esta reflexão cinco vezes. Primeiro, me atrevi a supor que, na América Latina, temos muitas pessoas esquisitas, que desobedecem mais ou menos uma coisa que não se sabe bem o que é (porque obedecemos muito bem a quase todas as ordens, desde que elas se disfarcem de liberdade em contraposição à ordem que estávamos obedecendo até então). Temos muitas pessoas dissidentes de um modelo, mas aceitando outros dez modelos, e algumas verdadeiramente afastadas do ordenamento hegemônico do consumo de ideias (se tivermos tempo, logo falaremos sobre por que algumas dessas esquisitices são realmente inspiradoras, enquanto outras são armadilhas do falo feminista). Mas isto é o mesmo que dizer que, na América Latina, não há um movimento queer.

No entanto, o fato de existirem pequenos grupos como o Cu, na Bahia, jovens lésbicas nas periferias da Cidade do México e círculos lésbicos radicais em São Paulo e Buenos Aires deve ser valorizado. E existem teorias e práticas fundadas em uma posição radicalmente rebelde à identidade de gênero expressadas por algumas feministas: a dominicana Yuderkys Espinosa, que na década de 1990 pensou a identidade performativamente; ou a brasileira Guacira Lopes Louro, que apresenta uma resistência ao mundo se afirmando queer, por entender este como um lugar do não lugar; ou a física argentina fundadora da revista Barrullera:una tromba lesbiana feminista [Barulheira: uma irrupção lésbica feminista], que, com seu cabelo arrepiado e suas camisetas, traça, durante suas aulas, paralelos entre a verdade científica e a imposição do gênero; ou a costa-riquense Susana Aguilar, que começou sua busca de uma identidade queerna literatura e terminou afirmando que a rejeição feminista ao queeré uma questão etária: um conflito entre quem aprendeu a se identificar com os gêneros e se reconhecer neles, que teme que o queerapague o que significa, para elas, ser mulher, e as mais jovens, que “entendem o queercomo um giro na forma de sentir, pensar e se expressar de maneira livre, sem o empecilho de ter que se identificar como homem ou mulher, como o feminino ou o masculino”. Oqueerfez com que elas esquecessem os binários, as ajudou a não pensar em dois sentidos, mas a partir dos sentidos, permitiu que elas incluíssem em suas políticas o pornô, o erótico, o sexual e os desejos, liberando as fantasias e fetichismos.

A partir deste reconhecimento, tive que enfrentar as companheiras de debate que me repreenderam por falar do queer, uma teoria que, segundo muitas feministas, encobre o poder do masculino, sua capacidade de normatizar seu direito à opressão, suas sexualidades violentas e sua exaltação da pornografia.

De repente, me dei conta de que algumas das minhas companheiras ignoravam o debate da tradução dos termos de nossas propostas, debate que leva a uma reflexão sobre a dimensão colonizadora das línguas da ocidentalização que falamos na América; línguas coloniais, sempre dispostas a achar mais fashiono que não é dito como ofensa, nem mesmo para fazer uma recuperação das palavras a partir da luta, preferindo o importado e, ainda assim, deturpando sua expressão.

Em síntese, não existe um movimento queerlatino-americano porque todo movimento precisa de uma identidade e um esquema de diferenciação; existem pequenos grupos e indivíduos que defendem que se alguma coisa torna-se instituída, em algum lugar, é preciso se mudar (ou seja, é necessário que nos convertamos em nômades, atravessando permanentemente o não lugar do questionamento); e, além do mais, pelas próprias contradições presentes na relação das classes altas (pós-)coloniais com suas línguas, em alguns círculos muito requintados da intelectualidade e da dissidência sexual, as pessoas se dizem queerem vez de LGBT.

Contudo, enquanto latino-americanista me pergunto se é realmente possível fazer uma crítica desestabilizadora às concepções de identidade. Isso, partindo de um lugar onde as identidades americanas estão em debate e são parte de uma busca do próprio ser em contraposição ao racismo, à exclusão, à negação e à exploração material. Localizando-me no contexto da América que tenta se livrar da exclusão de suas maiorias nativas (toda diminuição dos povos originários em definições híbridas, como mestiçagem, implica um mecanismo de ocultamento) e de um racismo que na Guatemala, como no Peru, chega ao etnocídio, não me surpreende que, passando pela reivindicação do abandono da identidade sexual, terminaríamos encontrando pessoas que tentam definir a identidade queer.

Na América Latina há muito pouca coisa que se pareça com o movimento queerdas sadomasoquistas californianas lideradas por Gayle Rubin e Pat Califia. Vídeos e blogues, no máximo. Não há ninguém que jogue com o domínio e a submissão, eliminando, através de uma representação teatralizada, qualquer essência que possa estar presente nessas duas expressões da sexualidade e também, principalmente, a dimensão do privilégio social que existe nas relações patriarcais. Não há ninguém que radicalize o direito à amoralidade das expressões sexuais.

Lembro de algumas caminhadas que dei por uns jardins costa-riquenhos há quase dez anos, com uma amiga, filósofa da Universidade Nacional, que se sentia atraída pelo queerporque lhe permitia abstrair da necessidade de definir/assimilar uma identidade sexual, que para ela era muito nômade. Porém, logo em seguida, ela defendia uma separação entre feministas e lésbicas, porque as primeiras não se definiam por sua sexualidade, o que seria uma incongruência… Penso nas e nos companheiros do grupo Letra S, que se dizem queere em seguida denunciam a pedofilia como sinônimo de violação de crianças… Vejo a palavra queercomo sinônimo de LGBT em documentos que eu chamaria, desrespeitosamente, de feminismo tonto das agendas internacionais e em qualquer lugar onde não há o cuidado de uma crítica lúdica de todas as suas identidades, mas sim um conjunto muito bem definido de formas de ser dos homens homossexuais, das lésbicas, das e dos bissexuais, das pessoas transgênero, travestis e transsexuais – onde se disfarça um desejo enorme de que todas e todos fossem assexuais. Descubro que na Universidade de Buenos Aires existe um departamento de Estudos de Gênero e um de Estudos Queer… Que viagem!

Na América Latina, já faz uns dez anos que o queersoa como algo muito novo, muito moderno, porque deliberadamente desconhecemos o impulso antissistêmico de sua história. Nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, o queersurge, em meados dos anos 1980, a partir da reunião de lésbicas sadomasoquistas, de heterossexuais dissidentes dos modelos monogâmicos e reprodutivos da heterossexualidade, de homens homossexuais leather, de homossexuais feministas que reivindicam a multiplicidade concreta das mulheres, das e dos promíscuos, das putas que gostam de seu trabalho e o consideram libertador dos preconceitos sobre sexo por dinheiro e corpo como ferramenta… Enfim, o queertoma forma a partir da reunião daqueles que se sentiam – e, de fato, eram – vítimas de uma perseguição motivada pelo exercício de suas sexualidades, instaurada com base em parâmetros muito rígidos fundamentados pelo direito, pela medicina e pela moral comum (aqui, inclusive, uma moral feminista e uma moral gay que começavam a exigir uma autovigilância das atividades sexuais dos membros de suas comunidades). Além disso, o queere a teoria queerque acompanhava a farta reunião de esquisitos e esquisitas falantes da língua inglesa, ativistas da desconstrução dos papéis de gênero, manifestaram-se no momento em que a epidemia da Aids impunha um verdadeiro terror à sexualidade e um retorno às morais de controle e autocontrole.

O queereram práticas, e a teoria queerse alimentava delas, assim como de pensamentos filosóficos e sociais muito atrevidos, provenientes da antropologia feminista de Gayle Rubin, ou da história arqueológica das relações de poder de Michel Foucault e ainda da – na minha opinião – chatíssima futurista Judith Butler, com seus estranhos gêneros que querem ser, mas ainda não são, algo diferente. Ao longo da década de 1990, outras ideias somaram-se ao queer, como foi o caso das práticas contrassexuais performativas de Paul B. Preciado e sua crítica à normatização de qualquer identidade, o que dinamizou as possibilidades do que o queerpode significar.

Encontro pouco disso na produção teórica, na prática política, nas motivações para a formação de grupos na América Latina; a não ser em pequenos e tímidos vislumbres. Nas palavras de Norma Mogrovejo:

“O queervem tendo uma interpretação muito ruim no espanhol; como diz Preciado, soa fashion, mas em inglês é uma palavra muito forte. A tradução ruim leva a erros de interpretação. Enquanto na gringolândia o queersurge como uma resposta à naturalização dos gêneros e ao caminho institucional tomado pelo movimento LGBT (com a busca do matrimônio, de filhos, de direitos patrimoniais etc.), aqui são justamente os LGBT que se assumem como queer, mas por falta de informação (ignorância). Sob a bandeira queer, oLetra Se outros pedem o casamento homossexual, dinheiro para prevenir e curar a Aids, campanhas contra a pedofilia e demais ações politicamente corretas.”

O interessante do queeré o desafio que vai da desnaturalização dos gêneros à política de identidades fixas, e também passa pela rejeição da carreira institucional e mercantil do movimento gay. O mais próximo dessa experiência na América Latina tem sido a autonomia lésbica, que, no entanto, apresenta críticas à política queer, porque esta colabora com a desestruturação do sujeito do debate feminista e nos vende um novo sujeito, supostamente performático, que como bem diz a dominicana Yuderkys Espinosa, recicla uma nova masculinidade porque não desestruturou os sistemas binários de atribuição de valores. Mais ainda, partindo desta perspectiva, o queercolabora com a fixação de papéis binários, porque sua centralidade, recuperada através da mudança ou reatribuição do sexo, traz novamente para a definição política a questão da naturalização dos papéis de gênero e da biologia.

A maioria das pessoas que usam o termo queerna América Latina, o fazem da mesma maneira que as feministas – que preferem dialogar com Estados e instituições internacionais, em vez de com mulheres reais – começaram a usar o termo genderou gênero, na década de 1990, e as e os homossexuais começaram a usar o termo gay, dez anos antes. São termos mais limpos, em english fashion, nada populares, que definem a própria diferença do modelo heteronormativo sem impulsionar revoltas sociais contra o modelo capitalista e a pós-modernidade neoliberal.

Diferentemente da força que tem nos países que falam inglês, queerna América Latina serve para criar uma confusão sobre o que significa desessencializar. Ele dá a entender que esse ato poderia ser uma despolitização ou desapropriação dos movimentos identitários, seja de sua raiva pela injustiça que vivem, seja do seu desejo de explodir em algo diferente do que aquilo que já está sublimado (respeitabilidade, ternura, igualdade, saúde), seja da possibilidade de se construir políticas que desfaçam de uma vez por todas as perseguições motivadas pela diferença, possibilitadas pelo modelo misógino, heterocentrado, racista e aerótico do capitalismo controlador.

O queerna América Latina sustenta, como fazem suas financiadoras, que as transsexuais são mulheres – ou seja, são pessoas com uma crítica encarnada no próprio corpo, profundamente revolucionárias das pautas da normalidade que os sexos atribuídos de gênero impõem, mas mulheres: um dos dois sexos reconhecidos pelo registro civil. O queeraqui sugere que um sexo e uma sexualidade não podem existir entre pessoas em idade pré-cidadã (as/os menores) e as/os cidadãos (maiores de 18 anos), porque toda essa sexualidade estaria inscrita em relações de abuso de poder e em violações ou impossibilidades de consenso de uma das partes, descontextualizando e desistoricizando por completo o significado de pederastia (como se todos os amantes menores de idade fossem coroinhas abusados pelo padre ou pelo bispo).

Isto é, na América Latina se usa queer para falar de sexos esquisitos, em um clima de termos bonitos, onde não existem putas, nem bichas, nem sapatonas, ainda que haja de tudo um pouco, sem pornografia, e com um mercado turístico, antrópico e hoteleiro que paga impostos e não ocupa as ruas.

Eu não sou queerporque meu sadomasoquismo é exemplar, seja em relações hetero ou lésbicas; passo por temporadas assexuais, mas não gosto muito de dildos; e evito assobiar quando vejo uma bunda bonita escondida pela saia vermelha de uma garota ou peitorais musculosos de adolescentes com camisetas militares. Não quero produzir um movimento com isso. Acredito, também, que tudo isso é muito mais “normal” do que a normalidade permite reconhecer como tal – ainda mais agora, em sua hora de crise e tentativa de domesticação das/dos esquisitos. Eu sou política e fundamentalmente feminista, ou seja, uma mulher que questiona os determinismos de certa biologia, as medidas de certo sistema jurídico, as medidas de certa moral que se sustenta na divisão sexual do trabalho, forjada para a exploração da capacidade produtiva e reprodutiva de todas as mulheres designadas para trabalhos femininos.

Enquanto feminista, acredito que não há sexualidades normais e esquisitas, e sim que todas as sexualidades são. Coloco-me contra todas as opressões, em particular as que se escondem atrás das expectativas morais acerca de como as pessoas devem ser e que dão base ao direito e ao olhar científico. Por isso, fico encantada com minhas amigas brasileiras que publicam artigos falsos com títulos chamativos, como “cientistas homossexuais descobrem o gene do cristianismo”. Analiso o trabalho doméstico como uma forma de exploração não remunerada e indispensável ao sistema capitalista. Estou junto de outras mulheres feministas para acabar com o sistema que une o sexo à invenção das raças humanas (racismo) e à hierarquia de classe (classismo) para oprimir as maiorias. Enquanto feminista, escrevo, penso em diálogo, construo um conhecimento relacional e não objetivo junto das pessoas e da realidade social e física, canto, danço, gozo, me mobilizo. Evidentemente, analiso o controle sobre a reprodutividade das mulheres e a “saúde” dos seus produtos como parte de um sistema econômico que oprime a liberdade humana. De novo enquanto feminista, assumo uma responsabilidade com a mãe terra; se consigo identificar semelhanças entre mim e ela, é porque me sinto parte de um mundo mais complexo do que esse que dá a primazia aos seres humanos. Se percebo algo religioso nessa identificação, algo mágico, espiritual, esmagador, provavelmente é porque, entre as esquisitas, há mais que apenas sadomasoquistas.

Conheça aqui o livro “Pensamento feminista hoje: sexualidades no sul global”. 

 

Francesa Gargallonasceu em Siracusa, Itália, em 1956. Formou-se em Filosofia na Universidade de Roma e completou mestrado e doutorado em Estudos latino-americanos na Universidade Nacional Autônoma do México. Teórica feminista radicada no México desde a década de 1970, é professora, ensaísta, romancista e poeta, com diversos livros publicados. Entre prêmios que recebeu, está a Medalha Omeccihuatl do Instituto das Mulheres da Cidade do México, em 2011.

Nota:

[1]Publicado originalmente em: Francesca Gargallo, “A propósito de lo queer en América Latina”, Blanco móvil, n. 112-113, p. 94-98, outono/inverno, 2009.

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