Cinco obras brasileiras recontextualizadas pela quarentena, por Pollyana Quintella

Cinco obras brasileiras recontextualizadas pela quarentena
Pollyana Quintella
A experiência do presente é capaz de transformar o modo como nos relacionamos com as imagens do passado. Agora, entre a solidão, o complexo de limpeza e a impossibilidade de estar fisicamente junto de outras pessoas, fiz uma seleção de cinco obras de artistas visuais brasileiras que podem ser reinterpretadas à luz do isolamento, ganhando novos contornos.
Lygia Pape – Divisor, 1968

Lygia Pape (1997-2004) foi uma das artistas ligadas ao neoconcretismo brasileiro. Sua obra abordou questões diversas, como o abstracionismo geométrico e o problema da identidade nacional. Já no final dos anos 1960, Pape se lança em experiências mais coletivas, como é o caso da obra Divisor, de 1968. Neste trabalho, um grande tecido de lycra é oferecido ao público. Cada indivíduo é convidado a encaixar sua cabeça nas várias aberturas criadas para esse fim, formando um grande corpo coletivo. O divisor de Pape exige encontro e agrupamento, aproximando a arte da ação coletiva. Para movimentar-se, o grupo precisa negociar desejos e movimentos múltiplos, com muitas cabeças e uma só pele. Nas palavras da artista, trata-se de uma “escultura social”. Durante a pandemia, a experiência do corpo a corpo é perigosa. Mas, em alguma medida, estamos todos também sob um enorme divisor — as janelas seguem interligadas na trama dos edifícios, as casas seguem interligadas na trama das cidades. O isolamento é, ironicamente, algo compartilhado.
Lygia Clark – Máscaras sensoriais, 1967

Lygia Clark (1920 – 1988) também fez parte do movimento neoconcreto, aproximando-se em seguida de uma experiência radical com o corpo e a terapia, quando a estética é substituída pela investigação sensorial. Dentre seus vários objetos sensoriais, as Máscaras propõem um mergulho na subjetividade e provocam estímulos diversos, com saquinhos de sementes, ervas e outros materiais. Ao vestir uma máscara de Clark, o indivíduo experimenta sons, cheiros e texturas, aos poucos libertando o que a artista chamava de “fantasmagoria do corpo”. O mascarado, ao contrário do corpo coletivo do Divisor, experimenta o mundo de modo íntimo e solitário. Em 2020, ao andar na rua, vemos máscaras que camuflam parte de nossa identidade, enquanto revelam o medo de um vírus invisível.
Lenora de Barros – Homenagem a George Segal, 1984/2006

Lenora de Barros (1953) é uma artista que atua nas interseções entre poesia e artes visuais. Na videoperformance Homenagem a George Segall, a artista escova os dentes  exaustivamente diante da câmera, até que a espuma cubra a sua cabeça. Com o rosto todo branco, Lenora assemelha-se às figuras de gesso do escultor George Segall, enquanto a música She Loves You dos Beatles toca ao fundo. Ao vê-la escovar os dentes desesperadamente, pensamos nos nossos recentes complexos de limpeza e nos rituais diários de intensa higienização. A ameaça habita nosso próprio corpo.
Márcia X – Soap Opera, 1988

Márcia X (1959 – 2005) foi uma artista ligada à performance, ao vídeo e à instalação, sobretudo relacionando temas controversos como infância, sexualidade e religião. Soap Opera, de 1988, foi uma instalação realizada no VI Salão Paulista de Arte, em colaboração com o artista Aimberê César. Trata-se de paredão composto por 3600 barras de sabão idênticas, empilhadas pela artista. Brincando com a palavra “Soap Opera”, que no inglês americano quer dizer “Novela”, a performance foi desdobrada posteriormente em quatro versões em vídeo, fundindo fragmentos musicais e experimentos sonoros com serras e marteladas. O acúmulo do sabão nos faz pensar na corrida em busca por papel higiênico que testemunhamos no início da quarentena, certamente orientada por princípios escatológicos.
Anna Maria Maiolino – Por um fio, série Fotopoemação, 1976

Anna Maria Maiolino (1942) é uma artista ítalo-brasileira que explora relações entre linguagem e corpo; gestualidade e matéria; cotidiano e condição da mulher. Nesta obra, de 1976, Maiolino convidou a mãe e a filha para posarem ao seu lado. As três gerações estão simbolicamente unidas por um fio de macarrão que perpassa suas bocas, compartilhando sangue, gene, tradição e atividade cotidiana. Hoje, os almoços e encontros familiares estão suspensos. Apesar disso, são muitos os fios invisíveis que seguem nos vinculando aos outros — amorosos, subjetivos, políticos, contagiosos…
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Pollyana Quintella é curadora e pesquisadora independente. Colabora desde 2018 com o Museu de Arte do Rio (MAR).
*Essa seleção foi originalmente publicada no instagram da revista A Palavra Solta (@apalavrasolta); Aqui, graças ao convite da Bazar do Tempo, pude desdobrá-la em texto.

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