A pandemia e o pandemônio
André Duarte
A experiência da pandemia do novo coronavírus nos confrontou com o inédito, nos forçou a uma experiência de choque, nos pôs diante daquilo para o quê não temos nome. Em meio a tantas incertezas, qual seria a tarefa da filosofia? Há quem considere que se trata de entrever o futuro. Agamben denunciou a pandemia como oportunidade para a expansão e normalização do estado de exceção; Zizek vislumbrou as possibilidades de um comunismo solidário por vir; Latour pregou a necessária diminuição do ritmo frenético de nossa produção econômica para deter a catástrofe ecológica; Han conjecturou acerca da expansão das medidas de controle psicopolítico.[1]
Creio, entretanto, que cabe à filosofia pensar o presente. Por isso, dentre tantos diagnósticos fico com o de Judith Butler, para quem importa pensar a clivagem neoliberal que aparta as vidas que merecem viver das vidas deixadas para morrer. Butler nos mostra que diante do vírus não estamos todos no mesmo barco. Ou então, que este barco gigantesco possui andares e estratificações sociais que protegem alguns, ao passo em que milhões são postos frente a frente com o risco da morte. Seja como for, enquanto outros países se viram às voltas com os efeitos devastadores do vírus, coube a nós passar por uma emergência sanitária e por uma emergência política simultaneamente. Aqui, estamos em meio à pandemia e ao pandemônio.
No mundo todo vimos como sempre foi dura e violenta a disputa entre salvar vidas ou salvar a vida da economia, metáfora mais que infeliz. Na Itália, França, Espanha, Inglaterra e nos Estados Unidos foi preciso disputar palmo a palmo a proteção da vida contra as fortes pressões econômicas visando o retorno à antiga ‘normalidade’. No Brasil, todos pudemos ver o que aconteceu naqueles países: as cenas dantescas no interior dos hospitais, as ruas desertas, a comoção generalizada. A disputa contra a morte foi aguerrida, mas parece estar sendo vencida. E então a pandemia finalmente chegou ao Brasil. E quando cabia aos governantes pôr em prática políticas públicas orientadas cientificamente para conter os horrores já testemunhados em outros países, pouco ou quase nada conseguimos fazer. A pandemia e o pandemônio haviam se entrelaçado.
Chego então àquilo que, para mim, cumpre ser pensado: nossa atitude de pouco caso com a vida em geral, até mesmo com a nossa própria vida; assim como o nosso descaso ainda maior com relação ao sofrimento e a morte dos nossos concidadãos. Concidadãos? Somos de fato um país de cidadãos? Sabemos que no Brasil até o momento são os muito pobres e os economicamente remediados que estão sendo atingidos mais letalmente pelo vírus e não parece que nos importemos tanto assim com isso, para não falar de nossos governantes.
Com as mortes se elevando a patamares assustadores, o presidente se pronunciou sobre a “histeria” em torno de uma suposta “gripezinha”. Quando o volume das mortes já começava a sair do controle ele disse: “E daí?” Agora sabemos que ao presidente mais incomoda a abertura de covas rasas do que as centenas de mortos que elas tentam desleixadamente acondicionar. Ora, se precisamos começar a pensar justamente sobre ‘isso’, parece-me que tal tarefa começa por saber ouvir o que dizem nossos governantes. Pois eles nada escondem, tudo dizem abertamente. E isto é algo a quê não estamos acostumados, sobretudo nós, intelectuais, especialistas das entrelinhas.
Kafka, nos diz Ricardo Piglia ao fim de sua novela Respiración artificial, era alguém que “sabia ouvir”.[2] Piglia nos fala das anotações de Kafka após seus encontros com um excêntrico pintor austríaco, que dizia coisas monstruosas e aberrantes, embalado por um “egocentrismo delirante, mezclado con una autocompasión histérica,”[3] no Café Arcos, na cidade de Praga, em 1909. Já então Adolf via-se a si mesmo como “el Führer, el Jefe, el Amo absoluto de millones de hombres, sirvientes, esclavos, insectos sometidos a su domínio…”[4]; e Kafka sabia ouvi-lo. Piglia nos diz que “Kafka hace en su ficción, antes que Hitler, lo que Hitler le dijo que iba a hacer. (…) Un futuro que el mismo Hitler veía como imposible, sueño gótico donde llegaba a transformárse, él, un artista piojoso y fracasado, en el Führer. Ni el mismo Hitler, estoy seguro, creía en 1909 que eso fuera posible. Pero Kafka, sí. Kafka … sabía oír. Estaba atento al murmullo enfermizo de la historia.”[5]
No Brasil, nunca vivemos uma guerra e talvez por isso nunca tenhamos sabido reconhecer que sempre estivemos emguerra. E assim, talvez nos tenhamos anestesiado em meio ao acúmulo desmesurado das tragédias individuais, a tal ponto que, agora, nem sequer nos damos conta de que, ao menos potencialmente, é todo um país que dorme sem saber o que lhe acontecerá no dia de amanhã. Ao que parece, nossa insensibilidade diante da vida e da morte é pré-covidiana, está conosco de longa data. A pandemia e o pandemônio político: será que ambos se pertencem em nosso país?
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André Duarte é professor no Departamento de Filosofia e nos Programas de Pós-Graduação em Filosofia e em Educação da Universidade Federal do Paraná e pesquisador do CNPq desde 2003. Atualmente é Diretor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Paraná. É autor dos livros “O pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia no pensamento de Hannah Arendt” (2000); “Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault” (2010).
Texto escrito para Pensar o tempo, maio de 2020.
[1] Veja-se a coletânea de textos sob o título de Sopa de Wuhan. Pensamiento contemporáneo en tiempos de pandemias. Editorial ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020.
[2] Piglia, Ricardo. Respiración artificial. Buenos Aires: Seix Barral, 1997, p. 205.
[3] Idem, p. 202.
[4] Ibid, p. 203.
[5] Ibid, p. 205.