Nota do autor à segunda edição brasileira
De tudo que já li sobre o governo de Jair Bolsonaro, duas coisas me parecem estar no centro do pesadelo que ele – lamentavelmente – conseguiu transformar em realidade em um tempo recorde: a multiplicação de incêndios na Amazônia, por um lado; e, por outro, a propagação exponencial de notícias falsas, memes e mensagens de ódio nas redes sociais. Trata-se de dois fenômenos tão preocupantes quanto complementares. Um deles destrói um patrimônio da humanidade, ecossistemas vegetais e animais, sociedades humanas; e o outro queima a internet, contamina consciências, aniquila oposições, causa destruição através das telas. O fogo descontrolado e a máquina do ódio, a cara e a coroa de uma mesma moeda – uma que tenta transformar o futuro de um país em uma distopia. Nem o mundo físico nem o digital estão a salvo da barbárie, nestes tempos obscuros e pandêmicos. Nem as árvores, onde nasce o papel, nem os computadores, onde nascem os livros: tudo está gravemente ameaçado.
Um dos capítulos deste livro se chama “Livrarias fatalmente políticas” e fala da importância das livrarias na defesa da liberdade, do pensamento crítico, do direito à dissidência, desde a Santa Inquisição até as ditaduras do fim do século XX. Se algum dia atualizá-lo, com certeza adicionarei histórias desses anos, em que coincidiram algumas das presidências mais perturbadoras da história. As de Donald Trump, Daniel Ortega, Nicolás Maduro, Vladimir Putin, Recep Tayyip Erdoğan, Rodrigo Duterte e Jair Bolsonaro. Contarei, por exemplo, que as cadeias de livrarias como a Travessa e a Blooks colocaram, quando então publicado, exemplares do livro Bolsonaro – o homem que peitou o Exército e desafia a democracia, de Clóvis Saint-Clair, ao lado da biografia de Adolf Hitler. Ou destacarei a importância que tiveram as seções de literatura LGBT nesses tempos homofóbicos.
“Deve haver alguma coisa nos livros, algo que não podemos imaginar, para fazer com que uma mulher permaneça em uma casa em chamas. Tem que haver alguma coisa. Ninguém se sacrifica a troco de nada”, escreveu Ray Bradbury em Fahrenheit 451. O Brasil vive uma das épocas mais duras de sua história. Um momento em que a democracia está sob enorme pressão – e que esta é duplicada pelo aparecimento repentino de um vírus implacável. Por isso, de todas as novas edições de Livrarias, essa segunda edição brasileira me traz uma empolgação especial. Porque entre as chamas, reais e metafóricas, o país mantém uma intensa atividade livresca. Como aconteceu em outros países, durante os meses de confinamento, os índices de leitura aumentaram e as melhores livrarias puderam ver como seus leitores fiéis as apoiavam e desejavam a sua reabertura. Estes são conscientes (somos conscientes) de que elas lhes dão o que a Amazon não dá, o que não encontram na internet, o que, tampouco, lhes dá o Governo: apoio, confiança, companhia, carinho, conselho, toque, dados verificados, informação confiável. E um horizonte abrangente, humano, composto de livros, estantes e pessoas, que traz um alívio diante da rede imensurável, sem limites, que é virtualmente infinita. Nossa pele e nosso cérebro, ao contrário, são finitos. E nas livrarias ficam confortáveis. E, em tempos difíceis, ficam a salvo.
Jorge Carrión, autor de Livrarias – Uma história da leitura e de leitores.
Barcelona, agosto de 2020